Joseph Conrad, H. P. Lovecraft e o horror que não se importa
Universos que não respondem nem se importam, onde a revelação vem tarde demais.
Adicionado a 25 de novembro de 2025 Facínora ArtigosEstava vendo umas paradas aí e acabei notando uma certa intercessão entre os trabalhos de Joseph Conrad (1857 – 1924) e H. P. Lovecraft (1890–1937), embora sejam raramente colocados lado a lado, e me perguntei se o britânico autor de O Coração das Trevas (1899) — romance no qual Apocalypse Now (1979) foi inspirado — teria tido alguma influência sobre o americano que é praticamente o pai do terror moderno.
Aparentemente, há um ponto de interseção que aproxima os dois autores: o horror que não se importa, ou melhor, a consciência brutal da indiferença do cosmos diante da vida humana. Aqui, tenho que fazer um disclaimer: embora já tenha lido vários contos de Lovecraft, isso já faz muito tempo e não sou nenhum leitor ávido. De Conrad, então, só tive contato com algumas análises e palestras de O Coração das Trevas, livro que parece interessantíssimo, e o próprio Apocalypse Now, filme que, por outro lado, achei muito chato (por mim, deviam ter mandado o Rambo pra resolver a situação e poupar toda aquela falação insuportável). Então, o que vou trazer aqui pode não ser altamente profundo.
De qualquer jeito, fiz uma pesquisa bem ordinária e posso dizer que enquanto um é visto como o romancista moral da modernidade; o outro, como mestre do horror cósmico: suas obras pertencem a tradições diferentes, tratam de escalas distintas e falam de terrores de naturezas bem distantes. Além disto, não encontrei nada objetivo que indicasse que Lovecraft tenha sido influenciado por Conrad, embora existam outras análises que também observaram semelhanças entre algumas de suas obras.
Todavia, o centro desta resenha é a supracitada “consciência brutal da indiferença do cosmos diante da vida humana” — presente nas obras destes sujeitos — que não é mero cenário, nem um conceito abstrato, mas o motor que desestabiliza o narrador, transforma o mundo num lugar onde as categorias morais dos personagens tremem e, na maior parte do tempo, se corroem. Trata-se de um tipo de atmosfera tão marcante que basta o contato indireto para reconhecê-la.
Conrad: a escuridão moral num universo que não responde
Em Coração das Trevas, o horror não vem de monstros, mas da percepção crescente de que a moral humana não tem peso algum contra a vastidão impassível do mundo. A selva onde se passa o romance não é personificada, nem demonizada. Ela simplesmente existe. E o fato de existir sem se importar é o que desarma o protagonista Marlow e torna possível Kurtz, o personagem maluco do qual Marlon Brando representou uma versão nos cinemas.
A descida do narrador pelo Congo é como quem observa um homem entrando, passo a passo, num território onde as categorias que sustentavam sua identidade começam a perder função. O universo, em Conrad, não pune, não recompensa, não age, sendo esta indiferença o que revela o que está dentro de todo ser humano (o qual, a propósito, de fato tem a natureza decaída).
O terror conradiano, portanto, não nasce do desconhecido lá fora, mas é moral: surge daquilo que descobrimos sobre nós mesmos quando o mundo não responde.
Lovecraft: o abismo cósmico onde o homem é irrelevante
Se Conrad trabalha com o silêncio moral do mundo, Lovecraft amplia esse silêncio para o universo inteiro, algo que faz diferença não em sofisticação psicológica, mas em escala. Em suas histórias, como The Call of Cthulhu e At the Mountains of Madness, a humanidade não é pequena: ela é irrelevante.
As entidades lovecraftianas não odeiam o homem, mas simplesmente não consideram sua existência. Da mesma forma que Conrad recusa a personificação da selva, Lovecraft não oferece leitura moral do cosmos que, em suas obras, não possui sentido, ordem ou orientação ética. Até o conhecimento — supremo valor racional — se torna perigoso porque abre portas para realidades extremamente perturbadoras para o cérebro humano. Ou seja, o terror lovecraftiano não vem diretamente da violência física, mas da percepção intelectual: certas verdades são tão inalcançáveis ao homem que, incapaz de lidar com elas em todos os seus aspectos ao mesmo tempo, acaba enlouquecendo.
O mesmo mecanismo narrativo: a revelação que chega tarde demais
Esta é mais uma convergência forte entre os dois autores, que constroem histórias em que o protagonista avança passo a passo rumo a um ponto de revelação, a qual não restaura nada, apenas destrói:
- em Conrad, destrói a segurança moral, pois Marlow entende a escuridão moral humana tarde demais;
- em Lovecraft, destrói a segurança ontológica do sujeito, que entende algo sobre o cosmos que rasga sua realidade psicológica.
Em ambos, o protagonista percebe algo sobre o mundo — e esse algo não pode ser “despercebido”. É tipo aquele negócio: “pra que que ele foi mexer com isso aí?”, só que com consequências desastrosas, pois sempre deixa o narrador marcado, o devolvendo ao convívio humano como alguém lesado por ter visto demais.
Essa estrutura de “descida” ou “aproximação” é idêntica, embora o conteúdo final seja diferente. Creio ser por isso que, como supracitado, há adaptações e comentários contemporâneos que colocam Heart of Darkness lado a lado com At the Mountains of Madness, pois ambos são relatos sobre cruzar um limite que jamais deveria ser atravessado.
O horror pela percepção, não pelo acontecimento
Tanto Conrad quanto Lovecraft também fogem da lógica típica do terror sensacionalista. Não é o evento brutal, o ataque, nem o monstro e nem a morte que assustam, mas entender (ou tentar):
- Marlow entende a escuridão interior do homem, o que o perturba profunda e indelevelmente;
- os narradores dos contos de Lovecraft se esfarelam ao perceber a insignificância do homem no cosmos.
A diferença é, novamente, na natureza dos perrengues. Conrad traz o terror de dentro do homem — que deve enfrentar o vazio moral — enquanto o horror lovecraftiano vem de fora, de locais inalcançáveis e até inconcebíveis. Os dois, porém, entregam o mesmo vazio que deveria responder a todas as perguntas fundamentais das narrativas, mas este vazio apenas responde com silêncio.
A indiferença como fundamento
O mais curioso dessa comparação é que ambos os autores chegaram a esse ponto por caminhos distintos: Conrad pelo seu perfeccionismo e experiência brutal real que teve no Congo e pela vida marítima; Lovecraft pela especulação filosófica e sua peculiar imaginação cósmica.
Acontece que, se for pensar, o destino é o mesmo: um mundo onde o homem não é o centro. E quando essa centralidade desaba, o que resta é:
- em Conrad, a luta frágil pela moralidade possível;
- em Lovecraft, a constatação de que nada disso importa na escala universal, e daí virar nó cego de vez.
Ambos, cada um à sua maneira, escrevem sobre a solidão final da consciência humana.
Então é isso aí, caterva.
Espero que esta minha viagem descendo o rio que atravessa as montanhas da loucura tenha sido de alguma utilidade, e que eu não tenha ficado louco de vez como algum pobre coitado que se deparou com geometrias não euclidianas — ou que nem o Marlon Brando, fazendo colar de orelha e tal.
Pensando bem, esta cena do Apocalypse Now deve ter inspirado Soldado Universal (1992), mas é melhor parar com a viagem por aqui. Afinal, tentar açambarcar os conceitos incomensuráveis debatidos aqui tenha sido demais para meu cérebro humano. Vai saber? Afinal, a gente muitas vezes vive de pequenas certezas locais, e quando tenta juntar tudo num panorama só, pode dar dá ruim (ou então sair uma bobajada danada). Mas, quem sabe isso sirva de recomendação desses autores, para quem ainda não os conhece, ou ao menos pra oferecer uma outra forma de revisitá-los.
Enfim, deixe aí nos comentários o que achou!
Abraços!
Mais informações e Lovecraft
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- Categoria(s): Artigos
- Autor, desenvolvedor e/ou publisher: Gaming Room
- Marcador(es): Arquivo cultural, Curiosidades, H.P. Lovecraft, Jogos de Zumbi, Literatura
- Postado por: Facínora

