Cannon Films e o fim dos anos 80: o efeito colateral do sucesso

Uma história de eficiência, lucro e saturação.

Adicionado a 16 de outubro de 2025 Facínora Artigos

Neste artigo, falo sobre a relação entre a Cannon Films e o fim dos anos 80 — ou melhor, argumento que a queda percebida na popularidade de muitas tendências que estavam na moda naqueles tempos foi um efeito colateral do sucesso extraordinário que esta firma experimentou.

Tive a ideia de falar sobre isto ao escrever um texto para acompanhar um vídeo que lista nove pérolas preciosas da Cannon, mas, como o assunto eram os longas em si, resolvi trazer esta resenha histórico-nostálgica separada pra cá. Em suma, atribuo a perda de brilho de muitos elementos oitentistas às atividades dos primos Menahem Golan e Yoram Globus, especificamente ao seu modelo de produção, extremamente eficiente.

Isto por si só já explica esta minha tese: o mercado simplesmente ficou saturado de filmes como Death Wish III, Comando Delta, os American Ninja e tal — geralmente muito divertidos, mas, convenhamos, sem muita profundidade dramática ou preocupação com coerência, trazendo apenas os mesmos conceitos que já estavam impregnados naquela década.

Mas vamos desenvolver mais esta ideia, certo?

Fadiga dos anos 80

Me lembro vividamente que, ao fim dos anos 80 e especialmente no início dos anos 90 (as coisas ainda demoravam a chegar por aqui), o pessoal descartava várias obras icônicas da década anterior como sendo infantis, irreais, inconsistentes, cafonas etc. De fato, nos anos 90, houve sempre uma necessidade de sofisticação (ou ao menos um verniz disto) em produções audiovisuais, o que era encontrado na forma de, por exemplo:

  • certa rebeldia nos protagonistas, seja por não respeitarem autoridades, viverem à margem da sociedade, terem passados sombrios ou simplesmente por serem transgressores mesmo;
  • vilões mais plausíveis e menos “larger than life”, como um gangster que controla uma parte da cidade, terroristas com objetivos menos megalomaníacos ou até um alienígena caçando humanos em meio a um conflito entre a polícia e traficantes em vez de destruindo o mundo. Este tipo de coisa;
  • esportes radicais, o que pode simbolizar até como uma subversão do espaço urbano, que transformavam praças ou escadas para algum museu em arenas onde alguns podem sair machucados. Ou seja, mais rebeldia e até um descaso pela segurança;
  • irreverência, deboche (beirando o niilismo, por vezes) e humor sem frescura, mesmo que não apelativo.

Lembro também que filmes como o excelente Point Break (1991) tinham quase isso tudo da lista acima, e justamente era um daqueles que ninguém ousava falar que era coisa de criança.

Enfim, algo como “um monstro vem de outra dimensão com um exército de ninjas ciborgues para dominar a Terra, e o único obstáculo é um exército de um homem só” já não era mais suficiente. Não que este tipo de tema seja ruim, tanto que décadas depois essas coisas voltaram de alguma forma ou de outra, mas havia sim uma busca por narrativas mais coerentes, com os pés mais no chão. Creio que, na época, a galera precisava era de dar uma respirada em meio a uma enchente.

Cannon: eficiência em alta rotação e baixo custo

Bom, aí que entra meu ponto (novamente). Se a Cannon, liderada pelos primos israelenses Menahem Golan e Yoram Globus a partir de 1979, era uma máquina de produzir filmes, é plausível pensar que tiveram responsabilidade nesta saturação. Veja bem, eles pegavam roteiros baratos (às vezes “lixo do fundo do baú”), produziam rápido e com orçamentos minúsculos – a maioria abaixo de US$ 5 milhões, e muitos na faixa de US$ 1-3 milhões.

O truque era a pré-venda de direitos: antes mesmo de filmar, vendiam os direitos internacionais de distribuição, vídeo caseiro (VHS era o boom da época) e TV em feiras como Cannes, o que financiava o próximo filme, criando um ciclo vicioso inicialmente bom. Bancos como Slavenburg’s entravam com “ponte de financiamento” usando essas pré-vendas como garantia.

Neste esquema, os primos inundaram o mercado sim: só em 1986, por exemplo, lançaram 43 filmes. No total, na era Golan-Globus (79-89), foram centenas de produções, focadas em ação over the top (ninjas, Chuck Norris, Charles Bronson, Van Damme etc.), mas também musicais (tipo Breakin’), sci-fi (Lifeforce) e até uns dramas mais sérios, como Runaway Train, que até foi indicado ao Oscar. Como o volume era muito alto, explorando principalmente a fome por entretenimento rápido na era VHS, eventuais flops eram facilmente absorvidos.

Vinheta da Cannon

Pura nostalgia:

Lucratividade: sim, mas nem sempre

Muitos filmes da Cannon davam prejuízo, mas o modelo como um todo era lucrativo, porque os hits pagavam a conta. Exemplos clássicos destes sucessos:

  • Death Wish II (1982, Charles Bronson): US$ 8 milhões de orçamento, faturou +US$ 40 milhões e ainda rendeu mais uma sequência.
  • Missing in Action (1984, Chuck Norris): baixo custo, virou série e rendeu fortunas no exterior.
  • Cobra (1986, Sylvester Stallone): US$ 25 milhões investidos, US$ 160 milhões em bilheteria global – o maior sucesso deles, que ainda deixou um legado cultural incrível.

O foco no mercado internacional (especialmente UK e Europa) também ajudava: filmes que flopavam nos EUA bombavam lá, e eles compraram cadeias de cinema (como a Thorn EMI por £175 milhões em 1986) pra controlar a exibição, enquanto dominavam as locadoras de VHS.

Eles apostavam em pacotes de 20-30 filmes por ano, e só uns poucos (10-20%) precisavam ser megahits pra cobrir os buracos. Até meados dos 80, o estúdio faturava consistentemente, virando um competidor indie gigante.

Mercado inundado

Com este esquema da Cannon, eles “inundaram” o ecossistema de filmes B dos 80 (a única era de ouro destes), aproveitando ou criando tendências como a febre ninja (American Ninja, 1985) e sequências quase infinitas (Delta Force). O crítico de cinema americano Roger Ebert até elogiou em 87 que a Cannon arriscava mais em filmes “sérios” que os grandes estúdios. Mas, até certa altura, a firma ficava em seu nicho, não competindo diretamente com blockbusters da Warner ou Paramount, ficando no underground de ação exploitation em meio à cultura VHS e drive-ins.

Este modelo sem dúvidas ajudou a descentralizar a produção cinematográfica e nos brindou com tantas preciosidades outrora vistas como trash que temos hoje. Entretanto, por outro lado, também saturou o mercado, e não apenas de filmes, pois muitos de seus elementos apareciam em outras obras, alimentando a fadiga em outros setores da cultura pop oitentista. Por exemplo, ninjas ainda estariam presentes em games, desenhos e até brinquedos, mas, para além do fenômeno das Tartarugas Ninja, já não tinham mais tanta força.

Quando a Cannon resolveu bater de frente com os cachorros grandes, talvez por perceber esta saturação, foi que o trem degringolou de vez. Apesar do sucesso, não eram invencíveis, e se esticaram demais com aquisições exorbitantes, flops caros (como o bagunçado Superman IV, cortado de US$ 36 mi pra 17 mi, e ainda deu prejuízo) e dívidas. Em 1987-88, o mercado esfriou, veio uma investigação dos canalhas da SEC por maquiagem financeira, e bum: falência em 1994, com a biblioteca vendida por migalhas. Golan e Globus viraram lenda de “loucos visionários”, mas seu império desabou por uma decisão que pessoalmente creio ser uma imprecisa tentativa de mudar de direção.

A Louca história da Cannon Filmes

Antes de entramos num campo menos objetivo desta resenha, segue um vídeo do Coleção em Ação Show que também celebra a trajetória desta companhia, embora sob outro enfoque e trazendo mais curiosidades:

Novos e malfadados rumos

Como dito acima, especulo que a Cannon Films, especialmente no final dos anos 80, percebeu que seu modelo começou a dar sinais de cansaço. Como supracitado também na introdução do post, o pessoal queria coisas mais maturas e sofisticadas, e talvez Menahem Golan e Yoram Globus tentaram apostas mais altas com isto em mente. Talvez o problema foi acreditar que, pra obter esta tal “sofisticação”, bastava despejar caminhões de dinheiro em produções com franquias e/ou atores de grande nome — como feito em Over the Top (US$ 25 milhões), Masters of the Universe (US$ 22 milhões) ou Superman IV —, resultando em fracassos e endividamentos que infelizmente selaram o destino da firma.

De fato, por volta de 1986-87, o modelo de produção de baixo orçamento da Cannon, que dependia de filmes baratos (US$ 1-5 milhões) e pré-vendas para VHS e mercados internacionais, começou a patinar. Vários fatores contribuíram:

  • Saturação do mercado: a enxurrada de filmes de ação, ninjas e vigilantes saturou as locadoras. O público começou a cansar de clones como American Ninja 4 ou Death Wish 5 (já sem a Cannon, mas no mesmo estilo). A fórmula já estava repetitiva.
  • Mudança no gosto do público: blockbusters como Die Hard (1988) e Lethal Weapon (1987), que já meio prefiguravam os anos 90, elevaram o padrão de ação, com roteiros mais polidos, personagens carismáticos e multifacetados e produção mais caprichada. Os filmes da Cannon, mesmo os melhores, pareciam datados com seus roteiros escritos às pressas e estética exploitation.
  • Crise no VHS: o boom inicial do VHS (1983-86) perdeu um pouco de força internacionalmente (mesmo aqui continuando forte), com locadoras mais seletivas e grandes estúdios dominando o mercado de home video com títulos de maior apelo.

Pessoalmente, não creio que Golan e Globus eram dois excêntricos irresponsáveis com dinheiro e muito menos bobos: perceberam que o modelo de “fazer 40 filmes baratos por ano e torcer pra 10% bombar” tava com os dias contados, e acreditaram que deveriam subir de nível, e talvez esta aposta em orçamentos mais altos tenha a ver com isso.

Apostas altas num salto arriscado

A partir de 1985-86, a Cannon começou a mirar projetos mais ambiciosos que, pelo menos em orçamento, deveriam competir com os grandes estúdios. Entretanto, apenas gastos maiores e nomes de peso nos cartazes, sem ajustar a essência das operações, não deu certo. Alguns exemplos de decisões desastrosas:

  • Aquisições megalomaníacas: em 1986, compraram a Thorn EMI Screen Entertainment (rede de cinemas e biblioteca de filmes no Reino Unido) por £175 milhões. Acho que controlar exibição e distribuição deu mais lucro até certa altura, mas depois parece que endividou o estúdio formidavelmente.
  • Filmes caros com estrelas: contratos com astros como Sylvester Stallone (Cobra, Over the Top) e Christopher Reeve (Superman IV) não eram ninharias. Cobra (1986) custou US$ 25 milhões, um salto enorme pros padrões deles, embora tenha dado lucro (US$ 160 milhões global). Já Superman IV (1987) foi, como já abordamos, um filme capenga que flopou. Over the Top (1987), o famoso Falcão, O Campeão dos Campeões, custou a bagatela de US$ 25 milhões, mas não trouxe o retorno esperado, embora nós brasileiros o tenhamos com um longa grandioso. Aqui faço outro adendo: a esta altura deste texto, espero que já deva estar claro que estas eram cifras muito altas naquela época…
  • Tentativas “sérias”: houve tentativas em filmes de prestígio, como Tough Guys (1986) com Burt Lancaster e Kirk Douglas, ou The Assault (1986), vencedor de um Oscar de filme estrangeiro, mas estes projetos não tinham o mesmo apelo comercial dos seus B-movies e não compensavam os custos.

Creio que Golan e Globus queriam o status de um Warner ou Universal, mas não tinham a estrutura (talvez nem a paciência) pra roteiros bem trabalhados ou produções polidas. Talvez acharam que poderiam continuar operando no modo “fazer rápido, lançar logo”, só que agora com orçamentos inflados e dívidas acumulando, combinação que acabaria se mostrando fatal.

O erro de cálculo e a derrocada

Meu achômetro foi que o grande erro da Cannon foi subestimar o que “sofisticação” significava pro público, ou mercado, pensando que bastava contratar Stallone, aumentar o orçamento e comprar cadeias de cinema pra virar um estúdio grande, mas houve também:

  • Gestão caótica: a Cannon continuou produzindo muitos filmes (30-40 por ano), mas agora com orçamentos maiores e menos margem de erro. Um flop de US$ 1 milhão era absorvível; um de US$ 20 milhões, não.
  • Dívidas e desconfiança: as pré-vendas, que sustentavam o modelo, começaram a secar quando distribuidores perceberam que os filmes mais caros nem sempre entregavam. Bancos como o Slavenburg’s apertaram o cerco, e em 1988 veio uma investigação da SEC por suposta maquiagem financeira, o que afundou a credibilidade.
  • Falta de visão criativa: eles não investiram em roteiros melhores ou diretores de ponta. Masters of the Universe (1987), por exemplo, tinha potencial com He-Man, mas um orçamento inflado (US$ 22 milhões) só entregou um roteiro fraco e efeitos meia-boca, resultando em prejuízo.

Em 1988, a Cannon já estava afogada em dívidas (estimadas em US$ 200-300 milhões). Golan saiu em 1989, enquanto Globus tentou salvar o barco, mas a falência veio em 1994. Talvez, se tivessem ajustado o modelo aos poucos, recalibrando a mira e produzindo menos filmes, mas com roteiros melhores, teriam sobrevivido o próximo período. Penso se daria certo também produzir novos caça-níqueis, mas com o que estava realmente em voga na década de 90, como a ação high-tech de Exterminador do Futuro 2, ou algo assim.

Legado

Acho que está bom. Isto aqui está quase virando uma tese de mestrado. Só falta não ser ingrato e declarar que, embora a Cannon tenha extrapolado, não podemos esquecer do tanto de coisa boa que nos trouxe. Também, acredito que, se não fossem Golan e Globus a inundar o mercado com dezenas de filmes de pancadaria e tiroteios constantemente, outros o teriam feito, e pode ter certeza que muitos queriam. Então, não podemos condená-los simplesmente porque exploraram um mercado favorável, entregando o que público queria, pelo menos até certa altura.

Além disto, não temos por que chorar pelo fim dos anos 80. Eles voltaram já há um bom tempo, e não só em na forma de retrowave ou nostalgia barata, mas de uma maneira mais orgânica, talvez até inconsciente, que não deve sumir de novo tão cedo, ao contrário do que os especialistas garantem. Quem sabe até convivendo com o que os anos 90 também trouxeram de bom? Afinal, foram as duas épocas que mais produziram cultura pop de qualidade, com toda a certeza. E a Cannon tem parte nisso.

Abraços!

Mais informações e nostalgia

Fontes e referências

Visão geral

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